sábado, 29 de junho de 2019

Introdução ao público VIII


VIII

Palco todo coberto de pedras.
Nenhuma sombra do humano.

A bomba explode na plateia.
De súbito, começa o teatro;

o público deixa sua condição de espectador,
torna-se acontecimento;

não são mais vítimas,
mas atores da própria dor
(ou seja, atores),
olham-se estupefatos
do próprio sangue;

(o teatro mantém o poder
de surpreender-te com teu próprio coração)
   
o público, sem saber, cumpre o roteiro
com fuga, pânico
e a imobilidade dos que não podem mais escapar;
o contraste cria o drama;

alguns deixam o prédio, mas não há lugar
onde não se encontrem a bomba
ou as pedras
que cobrem a superfície do possível;

e a possibilidade onipresente da explosão
deixa idênticos teatro e mundo.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Introdução ao público, IV a VII

IV

Balas e bombas ensinam a habitar a cidade,
a reconhecer vozes no estrangulamento,
a abrir as mãos para as mercadorias
regularem a circulação dos braços, que
se erguem, visíveis para a mira. Tiros se ouvem.


V

O público pegou sarna. Ou foi o contrário.
Não sabemos qual dos dois o remédio eliminará.


VI

As fotos de ursinhos compartilhadas por milhões
continuam a ser assunto privado. 
A redução de milhões
a fotos de ursinhos
é assunto público.


VII

Não foram comentados os insetos
que desceram sobre o fórum das nações
e o esburacaram das declarações até os aparelhos de escuta.

Ninguém compartilhou as fotos
das antenas que se mexiam no fórum das nações
esburacado dos vetos à segurança até as garrafas de vinho
e captavam o pensamento do mundo.

O fórum das nações
devolvido a sua vocação
sob seis patas multiplicadas
e ninguém o repercutiu
nas redes agora mudas
no público agora escasso
por jamais poder voar
ao contrário das larvas
depositadas nos buracos
do fórum das nações.

Não acabou o espetáculo;
as larvas ainda voarão, e o público
não foi treinado para agir em casos como este.


quinta-feira, 27 de junho de 2019

Introdução ao público, I a III


...

Venham ver! Cliquem aqui! Aproveitem!
Últimos dias da inteligência sobre a terra
ou os primeiros dias dos humanos.


I

Os cães trazem nos dentes
a garganta do público;

ela uiva, mas ainda não é cão;

e, se uiva, não é alguém, mas
uma forma de vida não autorizada.

   
II

– Que dia será ontem?
– Temos vaga na gestão de cemitérios.
– Lambeu tanto as grades
que a própria língua
passou a calar a liberdade.
– Os mortos podem trabalhar fora durante o dia?
– A fiança custa dois mil, o passaporte sai mais caro.
– Toda a indústria de entretenimento, antessala trancada da arte funerária.
– Aqui devemos abrir buracos.
Sabendo fazer isso, teremos emprego em toda parte.


III

O público ainda não foi adestrado
e contempla a jaula
como se lhe fosse exterior.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Nota sobre o projeto de criação do livro O desvio das gentes

O livro não existe ainda; ele está a ser preparado. O desvio das gentes, no momento em que escrevo esta nota, é um projeto de criação de um livro de poesia, apoiado pela Prefeitura da Cidade de São Paulo, que deve ser concluído em 2019.
Na tradição poética brasileira, podem ser encontradas algumas notáveis obras com preocupação cosmopolita. O Guesa, de Sousândrade, fez com que Wall Street e o sistema internacional do capitalismo entrassem na poesia nacional por meio de uma poética inovadora, muito à frente de seu tempo. Sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade, e As metamorfoses, de Murilo Mendes, apenas para citar mais dois exemplos, também unem a experimentação formal com a investigação literária do mundo.
O projeto de O desvio das gentes, mais modestamente, buscava, a princípio, inserir-se nessa linha da poesia brasileira e com ela dialogar, privilegiando a polifonia com a presença de diversas vozes que irrompem no poema para instaurar divergências e diferentes visões de mundo.
A temática do cosmopolitismo, que abrange tanto a criação de espaços de ação na esfera internacional quanto a problemática dos direitos humanos, individuais e coletivos, possui relevância para as poéticas de hoje. É de notar que o título dialoga com a antiga expressão "direito das gentes", que tem origem no Império Romano (ius gentium) para se referir aos direitos dos diferentes povos que integravam aquele Império, e ainda é empregada nos dias de hoje para designar o que hoje geralmente se denomina de direito internacional público.
No entanto, escolhi tratar de algumas dessas questões pelo prisma do desvio, e não do que é "direito". Em primeiro lugar, por ter escolhido a poesia, que privilegia esses olhares oblíquos sobre a realidade. Para olhares direitos e diretos, temos a prosa. 
Se o olhar é um olhar diverso, os temas escolhidos também se marcam pelo desvio, como os refugiados e os clandestinos, em relação aos cidadãos e ao Estados.
Em um terceiro plano, o desvio das gentes acaba por redundar em um afastamento do humano: bactérias e vírus estão entre os personagens do livro, entre catástrofes climáticas e devastação ambiental.
No Código negro, livro de 2013, com seus cachorros, nos Cinco lugares da fúria, de 2008, com mosquitos e cupins, no Cálcio (2012) eu já tinha efetuado alguns desvios em relação ao humano. Pretendo fazê-lo novamente, desta vez com a marca da catástrofe.

Um verso inspirado em Henry Kissinger, que morreu aos 100 anos

Henry Kissinger morreu em 29 de novembro de 2023 aos 100 anos. Christopher Hitchens escreveu um esclarecedor livro sobre a eminente figura d...