quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Lançamento no Rio de Janeiro com meu "Gravata lavada" e "Quadro de força", de Fabio Weintraub


Fabio Weintraub, que também recebeu o fomento do Edital de Publicação de Livros na Cidade de São Paulo, fará um lançamento no Rio de Janeiro de Quadro de força, seu mais recente livro de poesia, publicado pela Patuá. Participarei dele com O desvio das gentes e meu primeiro romance, Gravata lavada, também lançados por aquela editora.


O evento ocorrerá no dia 23 de dezembro de 2019 na Cantina Donanna, na Rua Domingos Ferreira, n. 63, em Copacabana: https://www.facebook.com/events/s/lancamento-carioca-de-quadro-d/2350319558614672/
Fica a dica para presentes de fim de ano...

sábado, 2 de novembro de 2019

Bactérias, união monetária e colapso climático: Palestra sobre o processo de criação literária

O lançamento de O desvio das gentes (Patuá) ocorreu, como previsto, na Biblioteca Municipal Álvaro Guerra, em São Paulo, em 24 de outubro de 2019. Agradeço a todos os presentes, que lotaram a instituição e deixaram felizes os autores.



Nessa ocasião, eu e Ruy Proença, que lançava Monstruário de fomes, também pela Patuá e com financiamento do 2⁰ Edital de Publicação de Livros na Cidade de São Paulo, proferimos palestras sobre nossos processos criativos.
Ruy Proença apresentou uma trajetória do poema em prosa desde o século XIX, pois o Monstruário é composto exclusivamente dessa forma. Quanto a mim, falei sobre o título, a capa, os temas que abordei (como colapso climático, guerras, bactérias, união monetária, refugiados), e expliquei as menções a Habermas, Kant, Ghorrat'ol Ein (a grande poeta e militante dos direitos da mulher no século XIX) e Mohammad Reza Shajarian (a maior voz da canção clássica persa). Falei também da apresentação de Taís Franciscon.


À minha esquerda está Proença. Acabei por ler dois poemas, "Constelação pós-global" e "Anexo secreto: coração público". A palestra pode ser vista nesta ligação: https://www.youtube.com/watch?v=sGMxvMsRrJ8

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

O livro à venda ou a paleontologia futura das mercadorias

O desvio das gentes já foi impresso e está à venda no portal da editora Patuá: https://www.editorapatua.com.br/produto/103660/o-desvio-das-gentes-de-padua-fernandes



Como simples amostra desse futuro pesteseller (retomando a palavra e a grafia de Haroldo de Campos no canto 45 de Galáxias, "pois não se trata aqui de um livro-rosa para almicândidas e demidonzelas ohfélias nem de um best-seller fimfeliz para amadores de amordorflor mas sim de um nigrolivro um pesteseller um horrídeodigesto"), a entrar agora no reino das mercadorias, a segunda parte de "Últimas novidades do velho concerto do mundo":

Haverá uma gente futura que encontre nossas últimas inscrições –
Mas elas nem foram inscritas, flutuam no espaço logo morto–
Haverá uma gente futura que decifre nossas últimas inscrições–
Por que o fariam, se não poderão mais comprar os produtos ou os candidatos anunciados–
Haverá uma gente futura
e ela se interessará
em conhecer as últimas inscrições–
Deixaria de se interessar e deixaria de aprender se encontrasse as últimas inscrições
Este mundo acabou, mas haverá uma gente futura
e ela se comoverá
ao topar com nossas últimas inscrições–
Última tarefa frustrada da civilização: criar uma civilização digna de interesse paleontológico, criar um mundo digital capaz de deixar algum vestígio fóssil

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Os destroços se reconhecem mundo

Relembro que O desvio das gentes será lançado em São Paulo no dia 24 de outubro de 2019 na Biblioteca Municipal Álvaro Guerra, na Avenida Pedroso de Moraes, 1919, no bairro de Pinheiros. Ruy Proença lançará Monstruário de fomes na mesma ocasião.
Estava caminhando em São Paulo no Treze de Maio deste ano, 2019. Passava por uma esquina onde pessoas costumam deixar lixo na calçada. Nunca vejo quando são retirados.
Daquela vez, jazia lá, naquele cemitério urbano temporário de coisas abandonadas, uma vitrine estraçalhada. Demorei um pouco para entender do que se tratava, pois era meio-dia e o sol batia com intensidade sobre os cacos.
A luz me impedia de retratar adequadamente a cena, tendo em vista tanto minhas limitações artísticas de não fotógrafo quanto as possibilidades técnicas da câmara do celular. Voltei pouco depois de uma hora, e a sombra do muro já cobria parte daqueles restos, que não me lembro bem quantos dias duraram no mesmo lugar. Não foram muitos.


Parecia ter sido uma vitrine, o conjunto de vidros partidos, por causa dos restos de preços e de palavras. Tive logo a intuição de que aquilo era a cara de O desvio das gentes, que ainda estava a escrever, e tirei várias fotos daquela paisagem efêmera.
Meses depois, mantive a convicção de que o livro que eu terminava se identificava com aquelas imagens. O editor, Eduardo Lacerda, gostou da sugestão de empregá-las e Alessandro Romio elaborou o projeto gráfico a partir de duas fotos que enviei.
Uma intuição que, depois, tentei entender. Gostei dos restos de preço, que podem ser identificados por causa das vírgulas com números em pares. A sensação que esse conjunto me passava era a de que os valores de troca tinham destroçado tudo. Isto poderia ser uma imagem do mundo? Ao menos para aquele que estava se formando em meu livro, sim.
Pouco pode se reconstituir das palavras que estiveram, mas ainda se vê "ação" e outras letras que parecem indicar "liquidação". Um mundo sendo liquidado? Também é o do meu livro.
O apelo a agir, contudo, que é o que parecia de mais inteligível naquela destruição, também me parecia significativo. Ele foi insuficiente para evitar o colapso, ou se trata daquilo que deve ser feito a partir dos destroços? Creio que o livro apresente pelo menos essas duas interpretações.
Podem-se imaginar outras coisas, decerto, como o gelo se partido em razão do colapso climático; o Ártico, ademais, é o local referido em um dos poemas do livro.
Outras estruturas podem vir à mente dos que possuem mais imaginação visual. Não sei, no entanto, se a vitrine estilhaçada se trata de metáfora do mundo em crise ou de metonímia dele: afinal, posso apenas estar tomando a parte pelo todo... De qualquer forma, o mundo também é paisagem efêmera.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Sobre o "capitalismo humanista das bombas": trecho da apresentação de Taís Franciscon

O desvio das gentes será lançado em São Paulo no dia 24 de outubro de 2019 na Biblioteca Municipal Álvaro Guerra, na Avenida Pedroso de Moraes, 1919, no bairro de Pinheiros. Ruy Proença lançará Monstruário de fomes na mesma ocasião, em que falaremos sobre esses trabalhos.



Tendo em vista que "capitalismo humanista" virou até linha de pesquisa em certos programas de pós-graduação, e por isso ele acabou sendo referido na obra, resolvi destacar este trecho da apresentação do livro, escrita por Taís Franciscon:
A democracia está numa ala separada: apinhada de pessoas que querem, finalmente, descobrir o que ela é; mas só há o modelo aprovado previamente por investidores. O museu do pó traz um conceito inovador: quanto mais resíduos tóxicos, mais avançada é a civilização. O museu dedicado à atmosfera provoca a asfixia; está repleto de retratos de genocidas que ganharam o Nobel da Paz.
Em meio à topografia negativa, o Livre Mercado, maiúsculas como um deus, vive a apoteose. Por um lado, realiza ações que não são tão distantes da realidade: defende o direito empresarial do agrotóxico; comercializa, online, atentados à dignidade humana, apenas porque são lucrativos; inclui nos decretos petrolíferos a compra de acidentes atômicos. Vale observar que é justamente o Livre Mercado quem motiva o “capitalismo humanista das bombas”: afinal, quem anuncia a cotação na Bolsa de Valores são homens-bomba. No último estágio, há bombas em paraísos fiscais, enquanto “a bomba financia / os planos globais de investimento / no mercado da catástrofe”.
Ao se falar desse capitalismo explosivo, entra em cena outro agente da perpetuação da barbárie: o Estado, cujos fiéis servidores são as jaulas. Dependente das fraturas dos ossos e das lágrimas, o Estado transmuta os direitos humanos para as barras de ferro e, diante da tragédia, surrupia a democracia, que lhe começa a parecer incômoda. Em nome dele, memórias de massacres são sufocadas. O apagamento de registros de atrocidades é tarefa conhecida pelo autor. Desarquivar o Brasil está na trajetória poética e jurídica de Pádua Fernandes; ele foi um dos pesquisadores da Comissão da Verdade do Estado e da Prefeitura de São Paulo.
Apesar de O Desvio das Gentes reverberar, inevitavelmente, os traços do horror brasileiro, fica claro que o panorama devastador pertence a uma geografia ampla, onde os “horizontes são alargados até o napalm”.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Murilo Mendes, a guerra e a memória

O desvio das gentes será lançado em São Paulo no dia 24 de outubro de 2019 na Biblioteca Municipal Álvaro Guerra, na Avenida Pedroso de Moraes, 1919, no bairro de Pinheiros.




Mas a notícia é que ganhei hoje a primeira edição de Poesia liberdade, de Murilo Mendes, um dos livros que mencionei no projeto a respeito da tradição da poesia brasileira sobre temas ligados ao cosmopolitismo. Ele é dedicado "aos poetas moços do mundo"; o autor tinha ainda 45 anos:




A primeira seção do livro, "Poesia liberdade", ele a datou indicando o ano de 1945;  a segunda, "Ofício humano", de 1943. A publicação ocorreu pouco tempo depois:




As imagens do terror e da guerra prevalecem na segunda seção, que o poeta indica datar desse ano de conflagração intensa da Segunda Guerra Mundial. 
Um dos poemas de que mais gosto é "A ceia sinistra", que assim começa:




Murilo Marcondes Moura, em sua tese sobre poesia de guerra (O mundo sitiado: A poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial), afirmou que:
No Brasil, a obra de Murilo Mendes é sem dúvida aquela em que mais se fez notar a presença da Segunda Guerra Mundial. Mas é inútil procurar referências diretas aos acontecimentos, cuja aparição é quase sempre oblíqua e metamorfoseada. 
Concordo; não há nada no livro como "Com o russo em Berlim" drummondiano. No entanto, o começo do poema parece aludir claramente à invasão da União Soviética pela Alemanha, que ocorreu em 1941; mais de vinte milhões de cidadãos soviéticos morreram por causa do ataque. Em 1943 os alemães foram derrotados na então Stalingrado.
Vejam a pontuação personalíssima do poeta, algumas vezes desrespeitada na reunião feita pela Nova Aguilar, e o gênio na observação "A morte coletiva apodera-se da morte de cada um.", como sói acontecer nos conflitos bélicos.
Murilo Mendes, nas duas partes seguintes de "A ceia sinistra", deixa as referências concretas e imagina a ceia na "mesa circular"; os mortos a perturbam, no entanto; no fim, lemos que "Agora eles estão livres e vivos/ Eles é que pisam sobre nossos túmulos.// Abancados à vasta mesa circular/ Comemos o que roubamos aos mortos conhecidos e anônimos."
O que lhes é roubado e devorado? A memória? Não sei, mas a presença dos poemas de infância nesse livro talvez possa indicá-la; a infância pessoal ("Quando brincavas com o pião"), certo, mas também a das coisas, como no curto e impressionante "Algo", que assim termina: "O que o cristal contém/ Na sua primeira infância." Relembro uma observação de Baudelaire que Eduardo Sterzi, em "Murilo Mendes: a aura, o choque, o sublime", convoca para entender a poética de Murilo:

Guys, para Baudelaire, corresponde a esse ideal de celeridade do traço: na sua técnica, misturam-se “um esforço de memória ressurrecionista, evocadora, uma memória que diz a cada coisa: ‘Lázaro, levanta-te’” e “um fogo, uma embriaguez de lápis, de pincel, que se assemelha quase a um furor”. O diagnóstico é correto: “É o medo de não agir com suficiente rapidez, de deixar o fantasma escapar antes que sua síntese tenha sido extraída e captada” (Baudelaire, 1863, p. 180). [...]Independentemente de a argumentação de Baudelaire se aplicar de fato à pintura de Constantin Guys, serve, porém, à perfeição para descrever a técnica de Murilo Mendes. Talvez este a tenha decalcado da maneira como trabalhava Ismael Nery. [...] 
O que pode fazer levantar os mortos e as coisas? Uma memória que abarque tudo, "Desde as origens até o fim", como a "A Bem-aventurança", segundo o último poema do livro, "Janelas do caos"?
O poeta está no campo do sagrado; foram os "Tambores da eternidade" que o fizeram falar dos "mortos do Brasil, da China, da Inglaterra/ Estendidos no meu coração...", conforme anunciou em "Elegia nova", o primeiro poema do livro, de um coração mais vasto do que o mundo, porém não à maneira do materialismo de Drummond. A sua maneira, no entanto, Murilo responde ao tempo histórico. Volto a citar o artigo de Sterzi:
É certo, porém, que Murilo não escrevia ao ritmo dos acontecimentos, da “metamorfose incessante” da realidade no mundo moderno. Ele também não buscou simplesmente transpor esse ritmo para seus poemas. Sua estratégia retórico-formal é mais complexa. Não se trata de uma questão de mímese, mas de responsabilidade: capacidade de resposta, e também, etimologicamente, capacidade de defesa. Murilo inscreve, em seus poemas, o sentido de urgência que lhe é despertado pelo momento histórico. Para ele, cada verso funciona como o ponteiro de um relógio a indicar que a hora enfim chegou. Não é o tempo, porém, que move esse relógio. É o pathos, tal como ele eclode numa situação de perigo.
Se bem lembramos, continuamos em situação de perigo, ou seja, no tempo histórico. Não temos, porém, a memória de Murilo.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Genocídio e Prêmio Nobel

O Prêmio Nobel de Literatura foi para Olga Tokarczuk (2018) e Peter Handke (2019). O adiamento da escolha de 2018 (motivado pelos escândalos sexuais e de corrupção na Academia sueca) acabou sendo tempestivo; no domingo, ocorrerão eleições na Polônia e a escritora aproveitou a publicidade mundial para pedir que seus compatriotas votem em favor da democracia.
O escândalo adiou a escolha de 2018, agora ele se incorpora na de 2019: a escolha de Handke gerou protestos de diversos grupos e autores por causa de sua atuação negacionista do genocídio cometido pela Sérbia contra muçulmanos em Srebrenica, um crime sem precedentes na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
A PEN America lamentou profundamente a escolha pelo fato de o vencedor ter usado sua "voz pública" para engar a verdade histórica e apoiar genocidas: "We are dumbfounded by the selection of a writer who has used his public voice to undercut historical truth and offer public succor to perpetrators of genocide, like former Serbian President Slobodan Milosevic and Bosnian Serb leader Radovan Karadzic."
Zizek, em um momento feliz, relacionou a escolha de Handke (um apologista da guerra) com a criminosa entrega de Julian Assange (que deveria ter recebido o Nobel da Paz) aos Estados Unidos, como exemplos do que a Suécia significa hoje.
Já copiei no blogue um poema de O desvio das gentes em que o Nobel vai para um míssil. Copio agora a primeira parte de outro, que descreve uma galeria do "Salão da Paz" em que são expostos, entre outras obras, certos vencedores do Nobel da Paz. A geopolítica como écfrase...


Galeria do Salão da Paz

I
Milhares de retratos, pura atmosfera de museu.
Milhões de turistas no museu da atmosfera.
O arcaico encontro do hidrogênio e do oxigênio nesta velha aquarela.
Quadros renascentistas das roupas do ozônio.
Guarda-chuvas sem proteção para ácidos.
Também arte dos ares contemporâneos.
Os genocidas que ganharam o Nobel da Paz.
As empresas monopolistas, únicas defensoras convictas do Livre Mercado.
A rotação da Terra, criada para a divisão de trabalho da vigilância.
Corpos vestidos de rios eletromagnéticos, agora nus e secos sobre os ares.

Substituição da pororoca por aterros de plástico.
O plástico, de mil utilidades, até a de atmosfera
e a de país, agora que a cidadania
resolve-se na asfixia.


P.S.1: Como brasileiro, lamento que o Nobel da Paz não foi para Raoni, embora reconheça que a trajetória dele está acima de condecorações. O líder indígena é bem o caso das pessoas que honram os premiadores, e não daquelas a quem são os prêmios que concedem honras.

P.S.2: Aproveito e relembro que O desvio das gentes será lançado em São Paulo no dia 24 de outubro de 2019 na Biblioteca Municipal Álvaro Guerra, na Avenida Pedroso de Moraes, 1919, no bairro de Pinheiros.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Contracapa: voo subterrâneo de sóis adiados

Depois de alguma discussão, este pequeno trecho do último poema antes do anexo secreto, "Últimas novidades do velho concerto do mundo", foi escolhido para a contracapa de O desvio das gentes:


Relembro que o livro será lançado em São Paulo no dia 24 de outubro na Biblioteca Municipal Álvaro Guerra, na Avenida Pedroso de Moraes, 1919, bairro Pinheiros.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

"Uma pedra, atirada em resposta a um míssil, inaugura um mundo novo": Taís Franciscon sobre O desvio das gentes

Convidei a professora e crítica Taís Franciscon, autora de ensaio sobre livro anterior meu, "'Topografia negativa' em Cálcio, de Pádua Fernandes", para escrever a orelha e a apresentação de O desvio das gentes.
Destaco este trecho daquele ensaio:
O livro é constituído pelo cálcio das ossadas dos mortos nas ditaduras militares da América Latina, outro legado do horror generalizado do século XX: voltam para contar as histórias de tortura, assassinato e da banalidade do mal [4] que marcaram os regimes autoritários. O poema foi escolhido especificamente por seu dialogismo radical, em que várias vozes distintas ecoam no poema, em que ressoam opiniões dadas em diálogos, contando inclusive com o uso de travessões, típicos dos discursos diretos — a voz dos torturadores inclusive, para quem os ossos sempre foram o resíduo impertinente da ocultação dos cadáveres.
Essa poética continua no livro novo, que trata de outras matérias, correlatas porém.
Franciscon, para minha alegria, aceitou o convite e, na orelha do livro novo, fez esta comparação com Cabral:
Uma pedra, atirada em resposta a um míssil, inaugura um mundo novo: assim começa O Desvio das Gentes. É como uma "Fábula de Anfion" às avessas: não o mito da criação cabralina, em que há o surgimento de Tebas a partir do deserto de pedras, mas sim uma história da destruição. Não só o que nos levará a essa destruição: sobretudo, há uma investigação do que sobrevive à catástrofe, à aniquilação de (quase) tudo.
O texto alude ao primeiro poema de meu livro, "Museu da sustentabilidade" que começa desta forma:
I
Uma pedra
é atirada em resposta ao míssil;
onde ela caísse
o mundo poderia se inaugurar.
De fato, o espírito é oposto ao da Fábula. Leiam abaixo o texto integral da orelha:


Relembro que o livro será lançado no dia 24 de outubro na Biblioteca Municipal Álvaro Guerra, na Avenida Pedroso de Moraes, 1919, bairro Pinheiros.


quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Lançamento de O desvio das gentes com Monstruário de fomes, de Ruy Proença, em 24 de outubro

Confirma-se o lançamento de O desvio das gentes no dia 24 de outubro na Biblioteca Municipal Álvaro Guerra, na Avenida Pedroso de Moraes, 1919, no bairro de Pinheiros (no portal da Prefeitura, há instruções de como chegar).
Escrevi, para o convite, que:
"O desvio das gentes" é o sexto livro de poesia de Pádua Fernandes. Com apresentação de Taís Franciscon, a obra busca empregar a experimentação formal para uma investigação literária do cosmopolitismo. A polifonia de vozes e ruídos irrompe nos poemas para instaurar divergências políticas e diferentes visões de mundo, em tempos de crise política e colapso ambiental: "O desastre governa,/ a lama financia,/ a bomba entrevista na tevê/ o candidato à catástrofe". Esse projeto foi realizado com apoio da Secretaria Municipal de Cultura - 2ª. Edição do Edital de Publicação de Livros na Cidade de São Paulo.
De fato, creio que estamos em uma época de catástrofes e, entre os ruídos do livro, estão explosões de bomba, gritos de socorro, máquinas em pane, além dos sons inaudíveis do labor das bactérias. Para quem quiser confirmar presença no facebook, esta é a ligação: https://www.facebook.com/events/1327111614115929/



A boa notícia é que o livro será lançado junto com Monstruário de fomes, de Ruy Proença, que também ganhou o edital de Fomento à criação da Prefeitura de São Paulo e criou uma página na internet para o seu livro: https://www.facebook.com/Monstru%C3%A1rio-de-fomes-422650534952403/. Será outro livro a sair pela Patuá.
A partir das 18:30h do dia 24, nós dois falaremos sobre os livros novos e os pretéritos; depois, daremos autógrafos. É a segunda que vez tenho esta sorte. Quando lancei em 2015 Cidadania da bomba e a edição brasileira de Cálcio, Proença fazia o mesmo com Caçambas na Casa das Rosas.
Poucos meses depois daquele lançamento, Victor da Rosa publicou a resenha "Ruy Proença e seus poemas de escavação da vida urbana", em que bem viu que "nas duas partes do livro, o poeta se dedica a conversar com monstros, compondo também uma espécie de 'monstruário'"; Caçambas apresentava "uma teratologia precisa do mundo contemporâneo, este morto-vivo".
Essa palavra, como se sabe, é drummondiana. No genial poema "Mineração do outro", temos o verso "monstruário de fomes enredadas", mas cuidado com onde a ler: a Nova Aguilar publicou uma edição da poesia completa que destrói essa invenção, reduzindo-a para a palavra corrente e aceita pelos corretores automáticos de ortografia, mostruário.
A poesia de Ruy Proença frequenta a teratologia há algum tempo. O monstruário dele, agora, terá algum contato mais forte com Drummond? Os leitores poderão conferir ainda este mês.

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Geopolítica, poesia brasileira, Ronald Polito e o desvario como política

No projeto de O desvio das gentes, escrevi que o livro trataria de temas da geopolítica, como o terrorismo e as migrações, sob o prisma dos desvios do cosmopolitismo. O título refere-se a uma das denominações do direito internacional, o "direito das gentes", que tem origem no Império Romano (ius gentium), e ainda é empregada para designar o direito internacional público.
Esse direito das gentes foi objeto da filosofia crítica de Kant no final do século XVIII com À paz perpétua. Nesse livro, o filósofo escreveu que a violação dos direitos humanos em uma parte do mundo, em uma sociedade cosmopolita, seria sentida em todas as outras partes, isto é, "dass die Rechtsverletzung an einem Platz der Erde an allen gefühlt wird".
A sociedade cosmopolita, que seria a última e mais difícil tarefa da humanidade, segundo o filósofo, ainda não aconteceu realmente. O livro de poemas ressalta as dificuldades da garantia dessa cidadania cosmopolita no cenário internacional, não obstante as declarações e convenções internacionais.
Eu explicava que já havia uma série de obras na poesia brasileira que tratavam desses temas: Sousândrade, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes estão entre os autores.
Meu livro, portanto, não pretendia inaugurar nada nesse campo, exceto trazer um olhar próprio sobre os problemas. Outros, hoje, também estão a fazê-lo, como Ronald Polito, em seu recentíssimo Rinoceronte (São Paulo: Quelônio, 2019). Trata-se de algo novo na obra de Polito, como tema, embora não como poética. Ele volta ao poema em prosa e escreve poemas de um só parágrafo, formados e dominados pela fanopeia, com poucos verbos, o que não espanta, se lembrarmos que Polito, além de poeta, editor, tradutor, historiador, é tanto artista quanto crítico no campo das artes plásticas. como sempre, Polito busca fugir da referência, e a poesia acontece quando a realidade é paradoxalmente agarrada por esta escrita abstrata. Para tanto, o autor emprega paradoxos e antíteses: "enquanto se constrói o desmonte", "O barulho é um silêncio", ou, na primeira frase, "Tudo demorou muito rapidamente."
Vejo, nos dezoito poemas ou dezoito parágrafos de um só poema com intertítulos, a configuração do blecaute após o colapso global; temos "O retrogresso" e a ordem que restou é a da "Decomposição".
O que gerou esta miniterra desolada? O livro é elusivo, como costuma ser a poesia de Polito; sabemos que "As horas nem mais escoam", "O dia amanhece mas é noite", "A noite era muito além da escuridão" e que "Desamanhece." Há referências a tortura ("Unhas sem dedos."; "Ainda não é hora de abater."), suicídio ("A oclusão do fôlego"; "O forno de gás"; "A paralisia afirmativa.").
As imagens de um colapso pessoal se entrelaçam às do colapso climático: "Algo menos que um deserto. Algo nem fragmento. [...] Não há mais nem uma ilha. Um furacão sempre está próximo."; qual delas é metáfora da outra? O que podemos saber é que o livro termina com um "blecaute", sob o "estatuto da caça", enquanto o rinoceronte no "Ar negro" está "sem freios".
Importa que, nesta época, as imagens do colapso climático e da terra devastada estejam se tornando moeda corrente; resta, como diz Polito, "Um pássaro exceto seu par de asas.", ou "Uma pedra para menos um pássaro.".
Em meu livro, O desvio das gentes, tudo é muito diferente, pois ele é mais alusivo do que elusivo e os poemas são mais longos. Mas é interessante constatar como os poetas mais diversos estão a tratar desses temas, no momento em que temos um lamentável governo simultaneamente provinciano e entreguista que, com uma estranha retórica "antiglobalista", alimenta as atividades e indústrias de destruição ambiental e ataca os fóruns internacionais, inclusive a própria ONU no sensível momento de abertura da Assembleia Geral.
Que pelo menos os escritores tenham lucidez nesta época de desvario como política, que só pode ter o colapso como resultado.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

O encontro dos mísseis e o lançamento de O desvio das gentes

O desvio das gentes será lançado na Biblioteca Pública Álvaro Guerra, que fica na Avenida Pedroso de Morais, 1919 (Pinheiros), no dia 24 de outubro. Na mesma ocasião, Ruy Proença lançará seu Monstruário de fomes, que também foi contemplado pela 2ª edição do Edital de Publicação de Livros na Cidade de São Paulo, da Secretaria Municipal de Cultura.
No evento, nós dois falaremos sobre os livros, que serão editados pela Patuá.



Ainda será feito o convite de lançamento com os logos necessários. A capa, que mostro acima, foi concebida por Alessandro Romio, autor do projeto gráfico, a partir de foto que tirei recentemente. Eu a escolhi porque me pareceu sugerir, de alguma forma, os resultados do encontro dos mísseis com o sistema financeiro. Abaixo, um dos poemas que tratam dessas consequências do mundo.


Excedentes recordes do complexo farmacêutico



O encontro do míssil
com o teto do hospital;

deve ser a isso
que chamam de política
ou de prêmio nobel da paz.

O abraço da bala
à coluna do ativista.

O segundo abraço da bala,
agora à cadeira de rodas do ativista.

Os bancos existem
para financiar encontros.

O segundo encontro do míssil
com o hospital, ainda sem teto;
bebês laicos
desaparecem.

Valas comuns
não representam encontros,
desapareceram da carteira de investimentos,
mas causam esquecimentos
de versos das orações.

A fila de inválidos nas entranhas da enfermeira,
os hospitais no interior do vírus,
as bactérias inchando
o corpo das orações: explodem
e superam a previsão dos investidores.

A guerra está curada
e pronta para seguir

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Constelação pós-global, Adorno, Kant e Beethoven

Um dos "improvisos" da primeira parte de Quasi una fantasia, de Adorno trata do encontro entre Beethoven e Kant em Schiller, na Nona Sinfonia, que musicou. com alterações, a "Ode à alegria". Um dos trechos mais conhecidos do coro que encerra a obra, canta-se que acima das estrelas deve morar um Pai Amado. Na tradução de Amancio Cueto Junior, "Irmãos, acima das estrelas do céu/ deve um bondoso Pai morar." Ele deve morar; não se diz, como pode pretender uma tradução equivocada, que ele esteja nessa morada.
Na música, está neste trecho mais lento antes do final. Escolhi esta gravação regida por Gustavo Dudamel e as vozes muito boas do Orfeón Donostiarra:

https://youtu.be/reR6josvHP8?t=3461

O que Adorno diz disso em 1930? O encontro de Beethoven e Kant vai além do "idealismo ético formal". No verso "muss ein lieber Vater wohnen", a ênfase no verbo "muss" levaria a esta consequência:
Deus torna-se mera exigência do sujeito autônomo, que roga ao paraíso estrelado lá no alto por alguma coisa que não parece estar totalmente contida na lei moral. Mas a alegria recusa atender à súplica; a alegria, em vez de se elevar acima do sujeito como uma estrela, é escolhida pelo sujeito de maneira impotente. [tradução de Eduardo Socha, na publicação do livro pela Unesp em 2018]
Esta curiosa superinterpretação de Adorno (as "Götterfunken", centelhas divinas, recebem muito mais ênfase do que aquele verbo na música de Beethoven), que deixa de lado a potência do compositor de criar(-se) um deus por meio da sinfonia, fez-me pensar na União Europeia, que tem como um de seus símbolos o coro que encerra essa obra musical. A escolha pela criação das Comunidades Europeias, nos anos 1950, a partir da Comunidade do Carvão e do Aço em 1951, também teria nascido da "impotência" de Estados que, entre duas superpotências, viram-se forçados a se unir e a deixar de lado divergências históricas?
Por coincidência, eu havia escrito faz um tempo para O desvio das gentes um poema que trata de uma possível impotência de hoje, e com um título que alude a estrelas (parodiando o livro de Habermas, é claro, eu não havia pensado em Beethoven). Transcrevo-o aqui:



Constelação pós-global



I

a luz crepuscular desce sobre a união monetária; tudo está normal, é necessário salvar a moeda, a união monetária passa a emitir o crepúsculo; todos estão preparados, 50% dos desempregados têm mais esperança do que 57% dos empregados; os bancos centrais avaliam os créditos e os fenótipos; os créditos da luz são avaliados pelo crepúsculo da política na união monetária; todos, salvo o crepúsculo, se mostraram incapazes de agir em prol do interesse comum, o crepúsculo entrega-nos os juros da luz que desce sobre o fenótipo da guerra para ver com as janelas trancadas o horizonte da dívida,

a luz crepuscular desce sob a união monetária, os juros ainda permitem aos Estados abrir as urnas e aos mendicantes destapar as latas de lixo, 32% dos vivos têm mais esperança do que 79% dos mortos; de súbito, o horizonte ilumina-se, os juros lançaram bombas.



II


O contrabando de drogas
que estimulam o canibalismo,
nova atividade econômica dos poderes emergentes


Quem compra? Ah, todos que investem em autoconhecimento automático, temos clientes dos
11 aos 80 anos, já podem concorrer ao mundo no mercado global.


Festas com drogas
que estimulam o canibalismo,
tendência em alta nos países centrais


Por causa dos efeitos alucinatórios, alguns tomam o produto e se deitam na rua com mendigos,
temos que reconhecer esse risco; mas, nesse caso, eles quase sempre devoram os mendicantes,
e o risco é superado.


Escritórios de expatriação de capitais
multiplicados pelas drogas
que estimulam o canibalismo,
o sistema se retroalimenta


Devoram mendigos, ou nova forma de vencer a competição pelo mundo no mercado global. 


Canibalismo autoempreendedor
ou diminuição de custos públicos
no policiamento intensivo
na vigilância de fronteiras


III


O país: uma velha que abocanhou o pão

e viu o pão engolir seus dentes




sexta-feira, 12 de julho de 2019

Cosmopolitismo e barbárie II

De Homi Bhabha e da reunião de textos O bazar global e o clube dos cavalheiros ingleses (Rio de Janeiro: Rocco, 2011; org. de Eduardo F. Coutinho, trad. Teresa Dias Carneiro)
Há um tipo de cosmopolitismo global, muito influente no momento, que configura o planeta como um mundo concêntrico de sociedades nacionais se estendendo até vilarejos globais. É um cosmopolitismo de relativa prosperidade e privilégio fundamentado em ideias de progresso que são cúmplices de formas neoliberais de governança e de forças de concorrência de livre mercado. Tal conceito de "desenvolvimento" global tem fé nos poderes praticamente sem fronteiras da inovação tecnológica e das comunicações globais. [...] Ao celebrar uma "cultura mundial" ou "mercados mundiais", esse modo de cosmopolitismo se move rápida e seletivamente de uma ilha de prosperidade para outro terreno de produtividade tecnológica, visivelmente prestando pouca atenção à desigualdade persistente e à miséria produzida por esses desenvolvimento desigual e irregular.
O autor segue propondo que a globalização tem que começar em casa e que as nações precisam lidar com suas diferenças internas, como os "povos aborígenes da Austrália", com o difícil balanceamento entre a igualdade e o direito à diferença.
Para meu livro, interessa enfatizar que aquele cosmopolitismo citado depende da produção da desigualdade persistente. Nesse sentido, o Brasil está na crista da onda, encontrando no extermínio novas formas de lucro nos renovados ataques aos povos indígenas, na extinção de direitos sociais, na impunidade oficialmente celebrada de chacinas, o narcopentecostalismo que segue atacando a liberdade religiosa sob a indiferença das autoridades, especialmente no Rio de Janeiro.
A política exterior do país afinou-se pelo mesmo diapasão: entre outros exemplos, o assédio de uma embaixadora na ONU contra um autoexilado brasileiro, Jean Wyllys, (reeleito deputado federal, deixou o país em razão das ameaças de morte feitas por bolsonaristas), e o alinhamento aos Estados mais retrógrados contra os direitos das mulheres.
O Brasil, porém, neste livro é antes meu ponto de vista do que meu assunto, ao contrário do que fiz em Canção de ninar com fuzis.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Cosmopolitismo e barbárie

No blogue, transcrevo parte das leituras que faço para o livro. Cito agora, do grande historiador que morreu no dia primeiro de julho deste ano, António Manuel Hespanha, esta passagem de Cultura jurídica europeia: Síntese de um milénio (Coimbra: Almedina, 2012):
Na Europa, o projeto cosmopolita levantou outro tipo de problemas [...] a criação de um direito doutrinal cosmopolita aceitável por um conjunto de culturas jurídicas vernaculares ainda muito diversas conduziu esse projeto a um formalismo extremo [...] em que comuns eram quase apenas os quadros conceitos abstratos. O que fez com que o sistema de direito global fosse tão vazio de conteúdos daqueles que têm realmente a ver com a vida concreta das pessoas que não oferecia qualquer garantia contra normas jurídicas  de conteúdos chocantes [....] Isso aconteceu, nomeadamente, com os direitos de países desse centro da Europa que constituía o núcleo da cultura jurídica académica do Continente; mas que, apesar disso, admitiram normas que, do ponto de vista dos conteúdos, equivaliam à barbárie.
[...]
Nos dias de hoje, como vimos, o impulso no sentido de um direito cosmopolita à escala mais elevada corresponde àquilo que, com muita simplificação e unilateralismo, se tem designado pela emergência de uma "sociedade global".  Como esta sociedade não corresponde nem a nada de institucionalizado, nem sequer a nada que tenha reduzido os localismos (e os consequentes vernáculos), as tensões entre o cosmopolitismo jurídico e direitos vernaculares de diversas escalas agravaram-se ainda mais. 
As relações entre cosmopolitismo e barbárie continuam a necessitar de mais explorações, tendo em vista que a insuficiente institucionalização continua, e as tensões mencionadas permanecem.

sábado, 29 de junho de 2019

Introdução ao público VIII


VIII

Palco todo coberto de pedras.
Nenhuma sombra do humano.

A bomba explode na plateia.
De súbito, começa o teatro;

o público deixa sua condição de espectador,
torna-se acontecimento;

não são mais vítimas,
mas atores da própria dor
(ou seja, atores),
olham-se estupefatos
do próprio sangue;

(o teatro mantém o poder
de surpreender-te com teu próprio coração)
   
o público, sem saber, cumpre o roteiro
com fuga, pânico
e a imobilidade dos que não podem mais escapar;
o contraste cria o drama;

alguns deixam o prédio, mas não há lugar
onde não se encontrem a bomba
ou as pedras
que cobrem a superfície do possível;

e a possibilidade onipresente da explosão
deixa idênticos teatro e mundo.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Introdução ao público, IV a VII

IV

Balas e bombas ensinam a habitar a cidade,
a reconhecer vozes no estrangulamento,
a abrir as mãos para as mercadorias
regularem a circulação dos braços, que
se erguem, visíveis para a mira. Tiros se ouvem.


V

O público pegou sarna. Ou foi o contrário.
Não sabemos qual dos dois o remédio eliminará.


VI

As fotos de ursinhos compartilhadas por milhões
continuam a ser assunto privado. 
A redução de milhões
a fotos de ursinhos
é assunto público.


VII

Não foram comentados os insetos
que desceram sobre o fórum das nações
e o esburacaram das declarações até os aparelhos de escuta.

Ninguém compartilhou as fotos
das antenas que se mexiam no fórum das nações
esburacado dos vetos à segurança até as garrafas de vinho
e captavam o pensamento do mundo.

O fórum das nações
devolvido a sua vocação
sob seis patas multiplicadas
e ninguém o repercutiu
nas redes agora mudas
no público agora escasso
por jamais poder voar
ao contrário das larvas
depositadas nos buracos
do fórum das nações.

Não acabou o espetáculo;
as larvas ainda voarão, e o público
não foi treinado para agir em casos como este.


quinta-feira, 27 de junho de 2019

Introdução ao público, I a III


...

Venham ver! Cliquem aqui! Aproveitem!
Últimos dias da inteligência sobre a terra
ou os primeiros dias dos humanos.


I

Os cães trazem nos dentes
a garganta do público;

ela uiva, mas ainda não é cão;

e, se uiva, não é alguém, mas
uma forma de vida não autorizada.

   
II

– Que dia será ontem?
– Temos vaga na gestão de cemitérios.
– Lambeu tanto as grades
que a própria língua
passou a calar a liberdade.
– Os mortos podem trabalhar fora durante o dia?
– A fiança custa dois mil, o passaporte sai mais caro.
– Toda a indústria de entretenimento, antessala trancada da arte funerária.
– Aqui devemos abrir buracos.
Sabendo fazer isso, teremos emprego em toda parte.


III

O público ainda não foi adestrado
e contempla a jaula
como se lhe fosse exterior.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Nota sobre o projeto de criação do livro O desvio das gentes

O livro não existe ainda; ele está a ser preparado. O desvio das gentes, no momento em que escrevo esta nota, é um projeto de criação de um livro de poesia, apoiado pela Prefeitura da Cidade de São Paulo, que deve ser concluído em 2019.
Na tradição poética brasileira, podem ser encontradas algumas notáveis obras com preocupação cosmopolita. O Guesa, de Sousândrade, fez com que Wall Street e o sistema internacional do capitalismo entrassem na poesia nacional por meio de uma poética inovadora, muito à frente de seu tempo. Sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade, e As metamorfoses, de Murilo Mendes, apenas para citar mais dois exemplos, também unem a experimentação formal com a investigação literária do mundo.
O projeto de O desvio das gentes, mais modestamente, buscava, a princípio, inserir-se nessa linha da poesia brasileira e com ela dialogar, privilegiando a polifonia com a presença de diversas vozes que irrompem no poema para instaurar divergências e diferentes visões de mundo.
A temática do cosmopolitismo, que abrange tanto a criação de espaços de ação na esfera internacional quanto a problemática dos direitos humanos, individuais e coletivos, possui relevância para as poéticas de hoje. É de notar que o título dialoga com a antiga expressão "direito das gentes", que tem origem no Império Romano (ius gentium) para se referir aos direitos dos diferentes povos que integravam aquele Império, e ainda é empregada nos dias de hoje para designar o que hoje geralmente se denomina de direito internacional público.
No entanto, escolhi tratar de algumas dessas questões pelo prisma do desvio, e não do que é "direito". Em primeiro lugar, por ter escolhido a poesia, que privilegia esses olhares oblíquos sobre a realidade. Para olhares direitos e diretos, temos a prosa. 
Se o olhar é um olhar diverso, os temas escolhidos também se marcam pelo desvio, como os refugiados e os clandestinos, em relação aos cidadãos e ao Estados.
Em um terceiro plano, o desvio das gentes acaba por redundar em um afastamento do humano: bactérias e vírus estão entre os personagens do livro, entre catástrofes climáticas e devastação ambiental.
No Código negro, livro de 2013, com seus cachorros, nos Cinco lugares da fúria, de 2008, com mosquitos e cupins, no Cálcio (2012) eu já tinha efetuado alguns desvios em relação ao humano. Pretendo fazê-lo novamente, desta vez com a marca da catástrofe.

"O Pulso", de Marco Aurélio de Souza, e "O ciclone da ordem do mundo"

O professor e poeta Marco Aurélio de Souza publicou a obra de crítica O pulso: decálogos sobre a poesia viva (Ponta Grossa: Lambrequim, 202...