Mas a notícia é que ganhei hoje a primeira edição de Poesia liberdade, de Murilo Mendes, um dos livros que mencionei no projeto a respeito da tradição da poesia brasileira sobre temas ligados ao cosmopolitismo. Ele é dedicado "aos poetas moços do mundo"; o autor tinha ainda 45 anos:
A primeira seção do livro, "Poesia liberdade", ele a datou indicando o ano de 1945; a segunda, "Ofício humano", de 1943. A publicação ocorreu pouco tempo depois:
As imagens do terror e da guerra prevalecem na segunda seção, que o poeta indica datar desse ano de conflagração intensa da Segunda Guerra Mundial.
Um dos poemas de que mais gosto é "A ceia sinistra", que assim começa:
Murilo Marcondes Moura, em sua tese sobre poesia de guerra (O mundo sitiado: A poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial), afirmou que:
No Brasil, a obra de Murilo Mendes é sem dúvida aquela em que mais se fez notar a presença da Segunda Guerra Mundial. Mas é inútil procurar referências diretas aos acontecimentos, cuja aparição é quase sempre oblíqua e metamorfoseada.Concordo; não há nada no livro como "Com o russo em Berlim" drummondiano. No entanto, o começo do poema parece aludir claramente à invasão da União Soviética pela Alemanha, que ocorreu em 1941; mais de vinte milhões de cidadãos soviéticos morreram por causa do ataque. Em 1943 os alemães foram derrotados na então Stalingrado.
Vejam a pontuação personalíssima do poeta, algumas vezes desrespeitada na reunião feita pela Nova Aguilar, e o gênio na observação "A morte coletiva apodera-se da morte de cada um.", como sói acontecer nos conflitos bélicos.
Murilo Mendes, nas duas partes seguintes de "A ceia sinistra", deixa as referências concretas e imagina a ceia na "mesa circular"; os mortos a perturbam, no entanto; no fim, lemos que "Agora eles estão livres e vivos/ Eles é que pisam sobre nossos túmulos.// Abancados à vasta mesa circular/ Comemos o que roubamos aos mortos conhecidos e anônimos."
O que lhes é roubado e devorado? A memória? Não sei, mas a presença dos poemas de infância nesse livro talvez possa indicá-la; a infância pessoal ("Quando brincavas com o pião"), certo, mas também a das coisas, como no curto e impressionante "Algo", que assim termina: "O que o cristal contém/ Na sua primeira infância." Relembro uma observação de Baudelaire que Eduardo Sterzi, em "Murilo Mendes: a aura, o choque, o sublime", convoca para entender a poética de Murilo:
Guys, para Baudelaire, corresponde a esse ideal de celeridade do traço: na sua técnica, misturam-se “um esforço de memória ressurrecionista, evocadora, uma memória que diz a cada coisa: ‘Lázaro, levanta-te’” e “um fogo, uma embriaguez de lápis, de pincel, que se assemelha quase a um furor”. O diagnóstico é correto: “É o medo de não agir com suficiente rapidez, de deixar o fantasma escapar antes que sua síntese tenha sido extraída e captada” (Baudelaire, 1863, p. 180). [...]Independentemente de a argumentação de Baudelaire se aplicar de fato à pintura de Constantin Guys, serve, porém, à perfeição para descrever a técnica de Murilo Mendes. Talvez este a tenha decalcado da maneira como trabalhava Ismael Nery. [...]O que pode fazer levantar os mortos e as coisas? Uma memória que abarque tudo, "Desde as origens até o fim", como a "A Bem-aventurança", segundo o último poema do livro, "Janelas do caos"?
O poeta está no campo do sagrado; foram os "Tambores da eternidade" que o fizeram falar dos "mortos do Brasil, da China, da Inglaterra/ Estendidos no meu coração...", conforme anunciou em "Elegia nova", o primeiro poema do livro, de um coração mais vasto do que o mundo, porém não à maneira do materialismo de Drummond. A sua maneira, no entanto, Murilo responde ao tempo histórico. Volto a citar o artigo de Sterzi:
É certo, porém, que Murilo não escrevia ao ritmo dos acontecimentos, da “metamorfose incessante” da realidade no mundo moderno. Ele também não buscou simplesmente transpor esse ritmo para seus poemas. Sua estratégia retórico-formal é mais complexa. Não se trata de uma questão de mímese, mas de responsabilidade: capacidade de resposta, e também, etimologicamente, capacidade de defesa. Murilo inscreve, em seus poemas, o sentido de urgência que lhe é despertado pelo momento histórico. Para ele, cada verso funciona como o ponteiro de um relógio a indicar que a hora enfim chegou. Não é o tempo, porém, que move esse relógio. É o pathos, tal como ele eclode numa situação de perigo.Se bem lembramos, continuamos em situação de perigo, ou seja, no tempo histórico. Não temos, porém, a memória de Murilo.
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