quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Murilo Mendes, a guerra e a memória

O desvio das gentes será lançado em São Paulo no dia 24 de outubro de 2019 na Biblioteca Municipal Álvaro Guerra, na Avenida Pedroso de Moraes, 1919, no bairro de Pinheiros.




Mas a notícia é que ganhei hoje a primeira edição de Poesia liberdade, de Murilo Mendes, um dos livros que mencionei no projeto a respeito da tradição da poesia brasileira sobre temas ligados ao cosmopolitismo. Ele é dedicado "aos poetas moços do mundo"; o autor tinha ainda 45 anos:




A primeira seção do livro, "Poesia liberdade", ele a datou indicando o ano de 1945;  a segunda, "Ofício humano", de 1943. A publicação ocorreu pouco tempo depois:




As imagens do terror e da guerra prevalecem na segunda seção, que o poeta indica datar desse ano de conflagração intensa da Segunda Guerra Mundial. 
Um dos poemas de que mais gosto é "A ceia sinistra", que assim começa:




Murilo Marcondes Moura, em sua tese sobre poesia de guerra (O mundo sitiado: A poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial), afirmou que:
No Brasil, a obra de Murilo Mendes é sem dúvida aquela em que mais se fez notar a presença da Segunda Guerra Mundial. Mas é inútil procurar referências diretas aos acontecimentos, cuja aparição é quase sempre oblíqua e metamorfoseada. 
Concordo; não há nada no livro como "Com o russo em Berlim" drummondiano. No entanto, o começo do poema parece aludir claramente à invasão da União Soviética pela Alemanha, que ocorreu em 1941; mais de vinte milhões de cidadãos soviéticos morreram por causa do ataque. Em 1943 os alemães foram derrotados na então Stalingrado.
Vejam a pontuação personalíssima do poeta, algumas vezes desrespeitada na reunião feita pela Nova Aguilar, e o gênio na observação "A morte coletiva apodera-se da morte de cada um.", como sói acontecer nos conflitos bélicos.
Murilo Mendes, nas duas partes seguintes de "A ceia sinistra", deixa as referências concretas e imagina a ceia na "mesa circular"; os mortos a perturbam, no entanto; no fim, lemos que "Agora eles estão livres e vivos/ Eles é que pisam sobre nossos túmulos.// Abancados à vasta mesa circular/ Comemos o que roubamos aos mortos conhecidos e anônimos."
O que lhes é roubado e devorado? A memória? Não sei, mas a presença dos poemas de infância nesse livro talvez possa indicá-la; a infância pessoal ("Quando brincavas com o pião"), certo, mas também a das coisas, como no curto e impressionante "Algo", que assim termina: "O que o cristal contém/ Na sua primeira infância." Relembro uma observação de Baudelaire que Eduardo Sterzi, em "Murilo Mendes: a aura, o choque, o sublime", convoca para entender a poética de Murilo:

Guys, para Baudelaire, corresponde a esse ideal de celeridade do traço: na sua técnica, misturam-se “um esforço de memória ressurrecionista, evocadora, uma memória que diz a cada coisa: ‘Lázaro, levanta-te’” e “um fogo, uma embriaguez de lápis, de pincel, que se assemelha quase a um furor”. O diagnóstico é correto: “É o medo de não agir com suficiente rapidez, de deixar o fantasma escapar antes que sua síntese tenha sido extraída e captada” (Baudelaire, 1863, p. 180). [...]Independentemente de a argumentação de Baudelaire se aplicar de fato à pintura de Constantin Guys, serve, porém, à perfeição para descrever a técnica de Murilo Mendes. Talvez este a tenha decalcado da maneira como trabalhava Ismael Nery. [...] 
O que pode fazer levantar os mortos e as coisas? Uma memória que abarque tudo, "Desde as origens até o fim", como a "A Bem-aventurança", segundo o último poema do livro, "Janelas do caos"?
O poeta está no campo do sagrado; foram os "Tambores da eternidade" que o fizeram falar dos "mortos do Brasil, da China, da Inglaterra/ Estendidos no meu coração...", conforme anunciou em "Elegia nova", o primeiro poema do livro, de um coração mais vasto do que o mundo, porém não à maneira do materialismo de Drummond. A sua maneira, no entanto, Murilo responde ao tempo histórico. Volto a citar o artigo de Sterzi:
É certo, porém, que Murilo não escrevia ao ritmo dos acontecimentos, da “metamorfose incessante” da realidade no mundo moderno. Ele também não buscou simplesmente transpor esse ritmo para seus poemas. Sua estratégia retórico-formal é mais complexa. Não se trata de uma questão de mímese, mas de responsabilidade: capacidade de resposta, e também, etimologicamente, capacidade de defesa. Murilo inscreve, em seus poemas, o sentido de urgência que lhe é despertado pelo momento histórico. Para ele, cada verso funciona como o ponteiro de um relógio a indicar que a hora enfim chegou. Não é o tempo, porém, que move esse relógio. É o pathos, tal como ele eclode numa situação de perigo.
Se bem lembramos, continuamos em situação de perigo, ou seja, no tempo histórico. Não temos, porém, a memória de Murilo.

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