segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Os destroços se reconhecem mundo

Relembro que O desvio das gentes será lançado em São Paulo no dia 24 de outubro de 2019 na Biblioteca Municipal Álvaro Guerra, na Avenida Pedroso de Moraes, 1919, no bairro de Pinheiros. Ruy Proença lançará Monstruário de fomes na mesma ocasião.
Estava caminhando em São Paulo no Treze de Maio deste ano, 2019. Passava por uma esquina onde pessoas costumam deixar lixo na calçada. Nunca vejo quando são retirados.
Daquela vez, jazia lá, naquele cemitério urbano temporário de coisas abandonadas, uma vitrine estraçalhada. Demorei um pouco para entender do que se tratava, pois era meio-dia e o sol batia com intensidade sobre os cacos.
A luz me impedia de retratar adequadamente a cena, tendo em vista tanto minhas limitações artísticas de não fotógrafo quanto as possibilidades técnicas da câmara do celular. Voltei pouco depois de uma hora, e a sombra do muro já cobria parte daqueles restos, que não me lembro bem quantos dias duraram no mesmo lugar. Não foram muitos.


Parecia ter sido uma vitrine, o conjunto de vidros partidos, por causa dos restos de preços e de palavras. Tive logo a intuição de que aquilo era a cara de O desvio das gentes, que ainda estava a escrever, e tirei várias fotos daquela paisagem efêmera.
Meses depois, mantive a convicção de que o livro que eu terminava se identificava com aquelas imagens. O editor, Eduardo Lacerda, gostou da sugestão de empregá-las e Alessandro Romio elaborou o projeto gráfico a partir de duas fotos que enviei.
Uma intuição que, depois, tentei entender. Gostei dos restos de preço, que podem ser identificados por causa das vírgulas com números em pares. A sensação que esse conjunto me passava era a de que os valores de troca tinham destroçado tudo. Isto poderia ser uma imagem do mundo? Ao menos para aquele que estava se formando em meu livro, sim.
Pouco pode se reconstituir das palavras que estiveram, mas ainda se vê "ação" e outras letras que parecem indicar "liquidação". Um mundo sendo liquidado? Também é o do meu livro.
O apelo a agir, contudo, que é o que parecia de mais inteligível naquela destruição, também me parecia significativo. Ele foi insuficiente para evitar o colapso, ou se trata daquilo que deve ser feito a partir dos destroços? Creio que o livro apresente pelo menos essas duas interpretações.
Podem-se imaginar outras coisas, decerto, como o gelo se partido em razão do colapso climático; o Ártico, ademais, é o local referido em um dos poemas do livro.
Outras estruturas podem vir à mente dos que possuem mais imaginação visual. Não sei, no entanto, se a vitrine estilhaçada se trata de metáfora do mundo em crise ou de metonímia dele: afinal, posso apenas estar tomando a parte pelo todo... De qualquer forma, o mundo também é paisagem efêmera.

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