segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Geopolítica, poesia brasileira, Ronald Polito e o desvario como política

No projeto de O desvio das gentes, escrevi que o livro trataria de temas da geopolítica, como o terrorismo e as migrações, sob o prisma dos desvios do cosmopolitismo. O título refere-se a uma das denominações do direito internacional, o "direito das gentes", que tem origem no Império Romano (ius gentium), e ainda é empregada para designar o direito internacional público.
Esse direito das gentes foi objeto da filosofia crítica de Kant no final do século XVIII com À paz perpétua. Nesse livro, o filósofo escreveu que a violação dos direitos humanos em uma parte do mundo, em uma sociedade cosmopolita, seria sentida em todas as outras partes, isto é, "dass die Rechtsverletzung an einem Platz der Erde an allen gefühlt wird".
A sociedade cosmopolita, que seria a última e mais difícil tarefa da humanidade, segundo o filósofo, ainda não aconteceu realmente. O livro de poemas ressalta as dificuldades da garantia dessa cidadania cosmopolita no cenário internacional, não obstante as declarações e convenções internacionais.
Eu explicava que já havia uma série de obras na poesia brasileira que tratavam desses temas: Sousândrade, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes estão entre os autores.
Meu livro, portanto, não pretendia inaugurar nada nesse campo, exceto trazer um olhar próprio sobre os problemas. Outros, hoje, também estão a fazê-lo, como Ronald Polito, em seu recentíssimo Rinoceronte (São Paulo: Quelônio, 2019). Trata-se de algo novo na obra de Polito, como tema, embora não como poética. Ele volta ao poema em prosa e escreve poemas de um só parágrafo, formados e dominados pela fanopeia, com poucos verbos, o que não espanta, se lembrarmos que Polito, além de poeta, editor, tradutor, historiador, é tanto artista quanto crítico no campo das artes plásticas. como sempre, Polito busca fugir da referência, e a poesia acontece quando a realidade é paradoxalmente agarrada por esta escrita abstrata. Para tanto, o autor emprega paradoxos e antíteses: "enquanto se constrói o desmonte", "O barulho é um silêncio", ou, na primeira frase, "Tudo demorou muito rapidamente."
Vejo, nos dezoito poemas ou dezoito parágrafos de um só poema com intertítulos, a configuração do blecaute após o colapso global; temos "O retrogresso" e a ordem que restou é a da "Decomposição".
O que gerou esta miniterra desolada? O livro é elusivo, como costuma ser a poesia de Polito; sabemos que "As horas nem mais escoam", "O dia amanhece mas é noite", "A noite era muito além da escuridão" e que "Desamanhece." Há referências a tortura ("Unhas sem dedos."; "Ainda não é hora de abater."), suicídio ("A oclusão do fôlego"; "O forno de gás"; "A paralisia afirmativa.").
As imagens de um colapso pessoal se entrelaçam às do colapso climático: "Algo menos que um deserto. Algo nem fragmento. [...] Não há mais nem uma ilha. Um furacão sempre está próximo."; qual delas é metáfora da outra? O que podemos saber é que o livro termina com um "blecaute", sob o "estatuto da caça", enquanto o rinoceronte no "Ar negro" está "sem freios".
Importa que, nesta época, as imagens do colapso climático e da terra devastada estejam se tornando moeda corrente; resta, como diz Polito, "Um pássaro exceto seu par de asas.", ou "Uma pedra para menos um pássaro.".
Em meu livro, O desvio das gentes, tudo é muito diferente, pois ele é mais alusivo do que elusivo e os poemas são mais longos. Mas é interessante constatar como os poetas mais diversos estão a tratar desses temas, no momento em que temos um lamentável governo simultaneamente provinciano e entreguista que, com uma estranha retórica "antiglobalista", alimenta as atividades e indústrias de destruição ambiental e ataca os fóruns internacionais, inclusive a própria ONU no sensível momento de abertura da Assembleia Geral.
Que pelo menos os escritores tenham lucidez nesta época de desvario como política, que só pode ter o colapso como resultado.

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